25 de maio de 2007

Dois poemas

Elegia a Bandeira

Quando cheguei em Pasárgada
o rei não quis me receber,
mandou a guarda me dizer
que nunca ouvira falar de mim.

Saí banzando pelas ruas
tão parecidas com todas as ruas
de qualquer cidade do mundo,
sujas com suas putas feias.

O hotel que eu queria
não tinha mais vaga;
dormi numa cama dura
de um quarto qualquer, no vigésimo andar.

E, no meio da noite,
acordei triste, angustiado
com vontade de me matar.
Aí eu abri a janela e fiquei olhando a noite silenciosa.

Luis


Cataléptico

Se eu morresse, não amanhã,
mas hoje, agora, neste exato instante,
e renascesse amanhã, ou depois,
ou daqui a dois meses, ou anos,
quem viria fechar meus olhos?

Por quanto tempo fechados ficariam
e, principalmente,
quem os abriria,
ou quem estaria diante de mim
quando eu os reabrisse.

Quanto tempo morreria eu?
para que pudesse,
no momento exato em que reabrisse os olhos,
ter você diante de mim, meu bem,
você e ninguém mais…

E eu te veria mais bela
e você me veria mais belo
e o abraço seria eterno
para eterna reconciliação.

Mas estou vivo, ainda,
e cheio de medos.
E se eu morrer, meu bem,
por quanto tempo seja,
você não vem abrir meus olhos
nem eu jamais os teria abertos.

Luis

16 de março de 2007

Carolina

— Então, meu filho. Já vai pros 18, hein?
— Pois é, meu pai. Graças a Deus.
— Pois eu queria, na verdade, aproveitar essa ocasião pra ter uma conversa séria com você.
— Sobre o que, papai?
— Ora, meu filho, você já é um adulto, conversemos como amigos.
— Estou ouvindo.
— Olha só, você precisa tomar algumas atitudes, deixar de lado alguns hábitos de adolescente, umas bobagens ainda de criança…
— Do que você está falando, papai?
— Ora, meu filho. Pra começar, pare de me chamar de papai. Fica meio bobo, entende? Você já é um adulto.
— Ah. Tá.
— Outra coisa: você tem que comer alguém, entende? Sair dessa fase de ficar de mão dada aqui na sala, com aquela mesma menina de sempre. Se ela não está a fim de dar, vai atrás de outra, de outras, e tal…
— Mas como assim, papai? Eu amo a Carolina, nós queremos nos casar…
— Eu sei, eu sei. Mas você já está com dezoito anos na cara, meu filho. Tem que comer alguém. E essa menina… ao que parece…
— Papai! Nós vamos nos casar na igreja, estamos nos guardando um para o outro.
— Se guardando de quê? Essa, não. Meu filho, me responde uma coisa na lata.
— Claro, papai.
— Você é veado?
— O quê?
— Você ouviu muito bem. É veado ou não é?
— Claro que não, papai! Gosto da Carolina.
— Então come ela, meu filho. Ou outra, se ela não quiser liberar a… Enfim, ela nem precisa saber.
— …
— Olha, um homem de dezoito anos tem que comer mulher, entende? É a hora. Depois você acaba casando, aí vai dar muito mais trabalho pegar mulher, entende? A patroa vai ficar vigiando, perguntando… Fica tudo mais difícil.
— Deixa eu ver se entendi: você trai a mamãe?
— Pssst. Olha aí o que você diz, meu filho. Estou lhe dizendo que um homem de verdade, e eu sou um homem de verdade, come mulher a vida inteira. Entendeu ou quer que eu desenhe?
— Mas, papai…
— Olha, vamos acertar o seguinte. Carolina é um nome ruim, é uma maldição. Essa mulher não vai dar pra você nunca, mesmo depois de casar vai ter que ser só pra fazer filho, e com o lençol cobrindo. Eu conheço o tipo. Faz uma coisa: compra lá pra ela uns presentinhos, se gosta dela, leva no cinema de vez em quando, mas depois deixa ela em casa e vai atrás de mulher pra comer.
— Não estou acreditando no que estou ouvindo. Pai, e a igreja, as pessoas vão…
— Nhã! Nem… Não esquenta a cabeça com isso não. Todo o mundo sabe que homem come mulher, meu filho. Não que você precise fazer ostentação disso, só entre os amigos mais chegados. Mas, do jeito que você está, caramba, só de olhar pra sua cara dá pra ver que você ainda não comeu ninguém!
— Mas não é o certo, papai? Casar virgem!
— Deus me livre, meu filho, quem foi que te ensinou isso? Olha, faz o seguinte. Pensa direitinho sobre o assunto e toma uma decisão. Mas tem uma coisa: não vou ficar sustentando filho virgem em casa. Está na hora já de virar homem, e se não quer virar homem por bem vai virar por mal.
— Não estou entendendo, papai.
— Não me chama de papai. Você já tem dezoito anos. E é o seguinte: ou começa a comer mulher, aliás já começa tarde, ou vai trabalhar pra se sustentar.
— Não pensei que você fosse colocar a coisa nesses termos.
— Pois coloco. Filho meu tem de honrar a família. E a comida que eu ponho no seu prato. Olha, meu filho, pense bem. Ninguém precisa saber, se não quiser não termina com a tal da carola não. Mas aproveita esse seu aniversário, sai na rua, senta com uns amigos… E dá um jeito de me comer uma mulher até, sei lá, segunda ou terça, ok? Se não, rua.
— Não sei o que dizer…
— Não diga nada, meu filho. Pense no assunto. De preferência com umas revistas mais interessantes, que eu deixei no seu banheiro. E mãos à obra. É melhor pra você, meu filho. Você vai ver. Depois que começa não quer mais parar. Entendeu? É só começar. Este vai ser um grande ano para você.
— É, papai. Talvez você esteja certo. Depois de começar não dá pra parar…
— Sim, eu estou certo, meu filho. E para com esse negócio de papai, você já tem dezoito anos. Agora vai pensar no que a gente conversou. Ou prefere já ir direto pro que interessa?
— Er… acho que ainda não. Vou subir um pouco e pensar sobre isso tudo.
— Vai, então, meu filho. Você não vai se arrepender. Ah, e tem outra coisa.
— O quê?
— A partir de agora, pode pegar o carro à noite. Só não me vai estragar a pintura, hein?
— Ah, tá. Boa noite, papai.
— Boa noite, meu filho. E feliz aniversário!
Luis

11 de dezembro de 2006

A Biblioteca

A sala está escura. Há estantes ao longo do cômodo, enfileiradas, lado a lado, transversalmente, em diagonal, labirinticamente. Todas repletas de livros. As janelas não se veem, só as negras cortinas. Não se ouve som algum. Apenas, a intervalos regulares de um minuto, o leve ruído de uma página sendo virada. Num canto da biblioteca, um círculo de luz, grande e pequeno o suficiente para iluminar um livro e as mãos de quem o lê. Na penumbra, um homem, não se sabe se velho ou novo, se belo ou feio, apenas os óculos se lhe veem. E a barba, talvez grisalha. O livro é antigo, a encadernação antiga puída, as folhas grossas amareladas. Uma das mãos sustenta o livro, a outra some na escuridão e reaparece a intervalos regulares de um minuto. A pele das mãos, a grossura dos dedos, a grossura escura das unhas sugerem, como os dentes de um cavalo, a idade do homem. Sim, agora se lhe veem as cãs. Agora, que os olhos se ajustaram à penumbra, percebe-se o rosto serenamente senil, a calva, a brancura espessa da barba. Os olhos percorrem as linhas e os parágrafos velozmente, cadenciados, concentrados, não se distraem. As letras refletem-se embaciadas no brilho úmido dos olhos. Os olhos percorrem páginas e mais páginas. Devoram, absorvem, perscrutam. Incansáveis. Intensos. Mas não violentos. Os olhos do homem parecem tocar o livro. Nota-se, quase, o trecho em que os olhos se encontram, o reflexo da luz nessas letras torna-se mais fremente. A página vira-se antes que a mão vinda do breu a toque. Os dedos dessa mão apenas se pousam sobre o livro aberto, farejando a nova página. A mão volta ao seu esconderijo, descansa no braço da poltrona. A poltrona é antiga, pesada. Atrás dela, e ao lado, e à frente, há estantes repletas de livros, ordenados misteriosamente. São estantes altas, compridas. A sala é grande. O círculo de luz, ao canto, não ilumina os corredores entre as estantes, mas se veem as lombadas dos livros, milhares de livros. A luz é quase nada. Não se vê mais o velho sentado, só o ponto de luz, no canto da biblioteca imensa, labiríntica, agora, daqui, absolutamente escura.
Luis

3 de novembro de 2006

Às vezes
Quanto tempo dura a felicidade?
Às vezes, o tempo de um suspiro,
de um beijo,
de um toque.
Às vezes dura menos que um atraso.
Dura o tempo de uma aproximação
ou de um afastamento.
A felicidade, meu bem,
dura menos que uma saudade,
que uma declaração de amor,
menos, meu bem, que um orgasmo.
A felicidade, às vezes,
dura o tempo de perceber
que ela acabou,
ou não existiu.
A felicidade, meu bem,
só existe no passado.
Às vezes.
Luis

22 de setembro de 2006

Soraya

Soraya tinha olhos verdes, pele morena e a boca vermelha. Todas as terças, vinha para a aula de sainha azul ou amarela ou vermelha como a boca. Sorria quando eu abria a porta, e dizia: Cheguei. Percebi, pensava eu, e suspirava. Apoiava o violoncelo na perna esquerda e deixava a direita inteira esticada. Eu fingia olhar a partitura, o arco, as cordas, e ela fingia ter estudado. Ela levava jeito para música, mas não estudava. Eu a advertia, constrangido: se não estudasse, seria um talento desperdiçado. Mas o desperdício ali era bem outro: namorava um mala que aparecia todas as terças, depois de encerrada a aula, para buscá-la. Ela se despedia lépida e saltitava até o carro do sujeito, e saíam os dois ouvindo música. Aquilo estragava minha noite de terça-feira. Era a última aluna do dia, num horário que eu havia marcado intencionalmente, planejando que ela se deixasse ficar até depois da hora. Mas aquele careca não falhava: às quinze pras seis buzinava lá da rua, e levava minhas esperanças de sexo animal embora.
Eu me fazia de professor sério, então. E com isso acho que fui ganhando alguma simpatia da garota. Mas era um tormento tocar a bourée com aquele par de coxas fenomenais na minha frente e aqueles lábios vermelhos que sorriam o tempo todo, sem franqueza, mas com doçura.
Um dia Soraya chegou séria para a aula. Sentou-se e dedilhou um pouco as cordas do instrumento (ela usava um dos meus violoncelos, e seu perfume ficava levemente impregnado na madeira). Mas não sorriu. Não estava propriamente triste, mas não sorria. Após ler dois ou três compassos, olhou-me firmemente e declarou, em tom de confidência, Acho que meu namorado está me chifrando.
Fiquei em silêncio por alguns segundos. Nunca tínhamos conversado nada propriamente íntimo. No máximo, coisas como “essa é minha peça preferida”, e fora eu quem tinha falado. Agora ela me fitava séria, séria, séria, esperando uma resposta. A sequência óbvia era perguntar “como você sabe”, e foi o que fiz. Sei, respondeu ela. Disse-me com tanta convicção, que tive certeza de que ela sabia. Viu? Não, mas sei. Depois ficou calada um tempo que pareceu enorme olhando o arco apoiado no pé esquerdo, e só me dei conta de que ainda estávamos ali quando ela levantou o rosto com os olhos úmidos e perguntou se eu podia ajudá-la. Não pude conter um sorriso nervoso. Ajudar em quê? Matar o sujeito, dar umas porradas nele, passear com ela de braços dados na frente do mala? Não. Queria que eu o seguisse.
Eu?!
É. Ele não te conhece, você tem esse jeito discreto e você faria qualquer coisa por mim.
A argumentação era maquiavélica. E irrefutável. E eu disse que podia, sim, ajudá-la. Ela, pela primeira vez na aula, sorriu; tão de leve que deve ter sido sem querer. Mas fiquei vendo aquele sorriso até a hora em que ouvimos a buzina na porta.

Cochilei uns minutos até ouvir o barulho do motor do carro ligando. Eles estavam saindo da lanchonete. Soraya sorria e o cara estava sério. Tirou o carro da vaga, fez meia-volta antes do balão e disparou para a Asa Norte. Segui atrás, tentando merecer o adjetivo recebido naquela tarde. O golzinho do sujeito tinha neon no assoalho, para-choque luminoso, aerofólio e o escambau. Ele deixou Soraya em casa e seguiu para o Lago Norte. Fui na cola. Aonde iria? Ela me dissera que o namorado morava no Lago Sul. Ao que parecia, as suspeitas de minha aluna estavam certas. Entrou numa rua, parou em frente a uma casa e esperou. Fiquei no fim da rua, de farol apagado, e esperei. Já imaginava a cara da mulher que apareceria, toda cheia de brilhos, entraria no carro dele, eles se beijariam euforicamente e seguiriam para um motel. Não sei quanto tempo esperei, mas deu para imaginar uma centena de rostos de mulheres entrando no carro. Ao fim do que pode ter sido dez minutos ou uma hora, para minha contente surpresa saiu da casa um homem. Barba na cara, jaqueta de couro, cigarro na boca. Entrou no carro do namorado de Soraya e trocaram algumas palavras. Olhei bem, tentando ser discreto, mas não vi nada mais, digamos, comprometedor. O motor funcionou e saíram. Toquei atrás.

Soraya me ligou no dia seguinte. Disse-lhe que viesse até minha casa e ela falou que não. A aula era na terça, tínhamos que ser discretos. Frustrei-me. Dava um dedo, ou até uma mão, para ver a cara dela quando eu dissesse que ele tinha ido buscar um homem; que os dois tinham seguido para um bar no Sudoeste, onde ficaram durante cerca de meia hora, numa mesa cheia de amigos; que depois voltaram ao carro e foram a pé até uma boate chamada Palace, onde eu não entrei porque não seria discreto, precisava arrumar uma companhia para não chamar a atenção; que eles tinham saído de lá duas ou três horas depois (enfatizei essa parte, para mostrar que tinha sido um esforço enorme meu); que tinham voltado para o carro e de lá seguiram para o Lago Norte, onde ficou o amigo; que o mala tinha tocado para casa, no Lago Sul, e aparentemente tinha ido dormir; que isso já ia lá pelas três ou quatro da madrugada. Ela ouviu tudo calada. Mencionou um amigo do cara que morava no Lago Norte, que ela tinha conhecido, mas não soube dizer se era o mesmo. Agradeceu minha dedicação, disse-me que eu era um bom amigo. Isso ela disse quase emudecida. Desligou e fiquei ali com o fone na mão. Ela não dissera mais nada. Não pedira que eu fizesse isso ou aquilo. Não deu nenhuma instrução. Não pediu que eu continuasse. Talvez estivesse convencida de que o namorado era um pilantra mesmo e meu trabalho estava concluído. Se assim fosse, minhas chances de levá-la para a cama aumentavam. Enquanto lucubrava, chegou meu primeiro aluno e fui dar aula dormindo em cima do violoncelo.

Terça-feira: Soraya entrou em minha casa séria. Estava atrasada. Nem encostou no instrumento. Sentou-se no sofá e disse mais ou menos que o namorado tinha mentido para ela, que não teria saído naquela noite. Descobrira que o amigo do Lago Norte que ela conhecia estava viajando desde o início do mês, portanto não era ele. Perguntei discretamente se ela conhecia a boate do Sudoeste, e ela me disse que não. Disse-lhe então o que havia descoberto nos últimos dias: tratava-se de um ponto de prostituição, e que os frequentadores eram, em geral, homossexuais. Tomei cuidado quando mencionei essa última palavra, mas pareceu uma explosão. Droga, estava sendo indiscreto. Vi seu rosto enrubescer, seus lábios ainda mais vermelhos tremiam levemente. Ficou em silêncio um tempo. Depois começou a chorar. Chorou intensamente, gritou, o que aquele tratante queria com ela etc; abracei-a meio sem jeito, depois servi-lhe uma água, depois esperei passar. Depois passou, e ela foi ao banheiro, lavou o rosto, voltou constrangida. Estava linda, seu rosto ficara mais expressivo, seus olhos verdes refletiam a luz que entrava ainda pelas janelas da sala. Sentou-se diante do violoncelo, tomou o instrumento nos braços, apoiou-o na perna esquerda, empunhou o arco e começou a tocar. Percebi, na primeira nota, que ela tinha estudado. Tocou um exercício que eu tinha adaptado de uma peça de Bach, com precisão, errou umas duas ou três notas, terminou e olhou para mim. Está bom? Sorri para ela: sim, está bom. Você tem muita sensibilidade musical. Ela sorriu um pouco, e quando ia recomeçar, ouvimos a buzina do gol lá fora. Ela me olhou com uma expressão indecifrável, enquanto se levantava. Rebolou lindamente até a porta e foi embora.

Dois dias depois, minha campainha tocou, de manhã. Achei que fosse meu primeiro aluno do dia, apesar de ainda estar um pouco cedo. Ele era um moleque baixinho, devia ter uns onze ou doze anos, não estudava nada e metia o dedo no nariz o tempo todo. Sempre chegava na hora, o motorista vinha deixar, ficava esperando na porta. O menino era desafinado, não aprendia a ler partitura de modo algum e me detestava. Reciprocamente. Era uma das piores horas da minha semana. Tomei coragem e fui atender.
Quando abri a porta, levei um susto: era o namorado de Soraya, com os olhos vermelhos de ódio. Antes que eu pudesse fingir um sorriso e perguntar-lhe o que queria, o rapaz fechou as duas mãos e me acertou os punhos no meio do peito, jogando-me para dentro da sala. Entrou e bateu a porta. Tinha os olhos de quem ia matar um. Eu não conseguia pensar direito. Não adiantaria gritar por socorro. Eu não sabia reagir a um ataque, nunca levara um soco na vida. Metaforicamente, alguns. Caído no chão, tentei respirar, e só então percebi que não conseguia. Filho da puta, ia me matar e eu não conseguiria nem respirar, nem dizer nada. Abri a boca, agitei os braços. E sufocava. Ele então me agarrou pelo pescoço, me ergueu do chão e disse, Se você encostar um dedo na Soraya outra vez, vai sentir muito mais dor que agora. E me atirou no chão, saiu rápido e bateu a porta com força. Pude ainda ouvir cantarem os pneus. Engasguei e, graças a isso, consegui finalmente respirar. Fiquei caído no chão, respirando com força e alívio, durante um tempo indefinido. Quando a campainha tocou novamente (era meu aluno, com certeza), não levantei, não disse nada, respirei com menos ruído até que o menino importuno fosse embora. E fiquei ali deitado, covardemente, tentando entender o que tinha acontecido. Soraya devia ter dito alguma coisa para despertar ciúmes nele, ou quem sabe eu não era tão discreto assim e ele tinha me visto segui-lo. Mas o que era aquilo de “encostar um dedo nela”? O máximo que eu fazia era apertar a mão de Soraya. E um abraço, na última terça (ah, que abraço!). Só. Quem me dera ter de fato feito alguma coisa que merecesse aquela agressão. E enquanto me deleitava imaginando o que poderíamos ter feito e não fizemos, a campainha tocou novamente. Era a segunda aluna, uma respeitável quarentona, casada, que tocava muito bem, estudava com afinco e com quem eu conversava sobre música barroca, história e literatura. Um alívio semanal, após a aula com o menino catarrento. Levantei-me, ensaiei uma expressão de pura normalidade e fui abrir a porta.

Soraya entrou na semana seguinte com um ar preocupado e me encontrou carrancudo. Eu passara a semana inteira pensando no que diria a ela, que cara deveria fazer, se sorriria, se não. Sentia raiva e pena dela. Tentava não acusá-la, afinal eu não sabia ainda o que ela tinha dito ao cara. Mas estava decepcionado. Quando ela entrou, uma confusão de sensações percorreu meu corpo, e meu peito pareceu doer ainda. Sorri com forjada falsidade, mas acho que ela não percebeu o gesto dúbio. Sorriu com sincero constrangimento e sentou-se no sofá. Estava de blusa branca, manga curta, calça e sapatos. Tinha os cabelos presos e usava um colar discreto, aliás como toda a roupa.
Ele está aí fora?
Não, vim sozinha.
Ficamos em silêncio um tempo, até que ela perguntou, de olhos baixos, Está com raiva de mim? Não soube responder. Estava, claro, mas como ter raiva dela por mais de um instante? A raiva em mim tinha se misturado com o imenso desejo que eu nutria por ela, e se transformava num sentimento ainda mais intenso. Estava magoado, mas se ela fizesse menção de pedir desculpas, pularia em cima dela e lhe arrancaria a roupa. Lógico que não falei nada disso, apenas balbuciei um não inseguro. Então ela, com a voz tão baixa que quase não ouvi, contou-me que tinha mentido ao namorado: que eu a tocara durante a aula e dissera que ela era linda. Disse-me que tinha feito isso para provocar ciúmes, e que não esperava aquela reação dele. Depois soluçou e confessou que, na verdade, desejava aquela reação, desejava ver uma demonstração de desequilíbrio do namorado, desejava que o cara se sentisse inseguro quanto à fidelidade de Soraya, como ela se sentia em relação a ele. Ouvi tudo espantado e quieto. Era o que eu esperava mas não queria ouvir. As mulheres são mesmo umas loucas, pensei, e devo ter feito cara de quem pensou isso, porque ela em seguida pediu-me que não a odiasse, que tinha sido uma fraqueza, uma vingança. Fiquei imaginando se era vingança contra o cara, por ser veado e enganá-la, ou contra mim, por ter revelado isso a ela. Quis perguntar-lhe se estava satisfeita, mas não tive coragem. Ela, no entanto, olhou-me de um jeito estranho, como se ao mesmo tempo quisesse demonstrar gratidão e arrependimento. Você é um bom amigo, disse finalmente. Era o que eu menos queria ouvir. Queria que ela pulasse no meu colo, me beijasse e pedisse que a fizesse esquecer o brutamontes. Mas ficávamos, mais uma vez, no “você é um bom amigo”. Tive a impressão, afinal, de que eu não tinha dito nada desde que ela entrara. E percebi com amargura que ela amava o namorado, e sentia por mim apenas uma espécie de gratidão. Enchi-me de coragem e ia dizer-lhe isso, mas ela se levantou e olhou para a porta, sugerindo que queria ir embora. Levantei-me, meio atrapalhado, sem saber com que coragem, e num impulso perguntei, O que esse babaca tem que eu não tenho? Arrependi-me em seguida de ter dito aquilo. Era a pergunta mais idiota que eu podia fazer. Ela responderia, por exemplo, que ele tinha dinheiro e eu não, que ele era bonito e eu não, que ele era jovem e eu não, que ele era corajoso e eu não. A todas essas respostas, eu argumentaria que ele não a amava e eu sim. Mas a resposta dela, lenta, cuidadosa e, no entanto, acachapante foi: que ele prometia a ela casar-se e fazê-la feliz, e eu só queria levar uma aluna bonita pra cama. Fiquei sem fôlego e sem resposta. Não havia resposta. Era isso mesmo. Senti vergonha, mas não disse nada. Ela sorriu sem graça, deu meia-volta e saiu. Sem mais uma palavra. Fiquei ali, no meio da sala, imóvel, incapaz de articular uma palavra, incapaz de provar que ela estava errada. Joguei-me com raiva no sofá, com raiva dela e de mim, arrependido de não ter reagido, de não ter negado a verdade inegável. E com raiva e arrependimento adormeci no sofá.

Dois ou três dias depois, a mãe de Soraya me ligou e anunciou que a filha não viria mais às aulas, que desistira do violoncelo e queria aprender trompete. Mandaria o último cheque pelo motorista. Agradeceu e desligou.
Luis 

7 de setembro de 2006

Mais um poema

Hipopótamo
O hipopótamo é o animal
mais tranquilo que há.
Nada abala sua pesada calma
Um milhão de toneladas de placidez.
De uma só cor, de uma só pele,
o hipopótamo é só serenidade,
com seus olhos baixos, pequenos,
que com suave indiferença
fingem não perceber o que se passa.
O hipopótamo, parado, na água parada,
afogadamente descansa,
indolente, moroso,
desdenhoso das urgências da vida.
A pressa, a angústia, as tensões,
a escassez, a necessidade, o fim dos tempos,
o dinheiro, esse terrível mal humano,
inerte, o hipopótamo despreza.
Quanta sabedoria! Quanta paz!
Quem me dera, meu Deus,
quem me dera, um dia,
ser um hipopótamo!

Luis