14 de maio de 2006

A Vela

Quando cheguei à porta da capela, havia um cheiro forte de flores, misturado àquele inconfundível cheiro quente de lágrimas. O caixão estava aberto, no centro do salão. O corpo, pequenino, mais encolhido ainda entre pétalas de flor, mal se podia ver da porta. Meu amigo estava ao lado do caixão, com a viúva, inutilmente consolando-a. Havia diversas velas iluminando o ambiente, em pequenos castiçais espalhados pelo salão. As mulheres choravam mais que os homens, os quais tentavam fazer gracejos uns com os outros, dando pequenos amarelos sorrisos a cada troca de palavras. Quase todos de óculos escuros. Chovia, ou melhor, agonizava uma chuva que já molhava o chão desde o dia anterior. Um ventinho frio me impeliu para dentro do recinto. O velório era de um primo do meu amigo. Não conhecia ninguém. Cheguei-me ao caixão, troquei um olhar condoído com meu amigo, disse-lhe qualquer coisa que ele não entendeu e ao que respondeu com outra coisa qualquer, depois eu desviei os olhos para o corpo do defunto. Ele se aproximou de mim, o meu amigo, não o defunto, e disse que era uma pena, era uma pena. Concordei, com um movimento de cabeça, olhei para os lados, dei uns tapinhas no braço do meu amigo. Ele fez força para sorrir e voltou para o lado da viúva. Olhei em volta mais uma vez e vi, num canto, uma porta de banheiro. Dirigi-me para lá, entrei, fechei a porta, respirei fundo, urinei, lavei as mãos, olhei-me no espelho, respirei fundo, respirei fundo, respirei fundo. Após alguns minutos, saí do banheiro e vi que já começavam a fechar o caixão. Fiquei aliviado, olhar um defunto sempre me dá a impressão de que ele está me vendo de outro lugar. Enquanto as pessoas começavam a sair, imaginei que cada um deveria levar uma daquelas velas dos salão, pelo caminho até o túmulo, em sinal de respeito ao morto. Não entendi bem por que pensei isso, mas acabei pegando uma das velas e fui caminhando com ela na mão.
Fui olhando as árvores, os pássaros, as formigas, os insetos, as flores, num cemitério só estão mortas mesmo as pessoas. A chuvinha persistia, cada vez mais fraca. A vela que eu pegara, assim mesmo, se apagou, e eu, sem saber o que fazer dela, guardei-a no bolso do paletó. Chegamos ao local, havia um gazebo montado para que os vivos pudessem se proteger da chuva, mas eram muitas pessoas e não coubemos todos. Fiquei num canto da tenda, molhando-me pela metade. Os funcionários já tinham cavado boa parte da cova. As covas daquele setor eram rasas, empilhadas de três em três, separadas por lajes de concreto. O corpo ali seria enterrado já por cima de outros dois túmulos. Olhei longe e imaginei todos os corpos enterrados naquele edifício de mortos, milhares de corpos uns sobre os outros, alguns certamente já se tinham misturado e agora moravam juntos, mas lembrei-me depois de que, naquele cemitério, a maior parte dos túmulos era de ricos, não estavam empilhados como ali, no setor mais barato, onde as pessoas, para enterrar uns, tinham de pisar outros.
Alguém começou a dizer qualquer coisa sobre o morto, certamente elogios comuns, nesta hora não se lembram os vícios, as bizarrias, tampouco as virtudes peculiares se lembram, apenas aquelas que a qualquer um se atribuem e a ninguém pertencem todas. A chuva começou a engrossar e as pessoas que estavam desabrigadas tentaram se comprimir sob o gazebo, e outras, que já lá estavam, sufocadas, preferiram ao aperto a chuva. Eu, que já estava no meio-termo, lá fiquei, nem tão molhado, nem espremido.
Um grupo de pessoas que saiu para a chuva posicionou-se sobre uma laje de aproximadamente três por dois metros, que, provavelmente por conta da chuva e do peso, partiu-se. A terra por baixo dela, sem sustentação suficiente, abriu-se e as pessoas que por cima estavam começaram a cair sobre a segunda laje. Eu, que estava na beira da laje quebrada, escorreguei, mas apoiei o pé sobre um caixão e voltei para cima rapidamente, com os sapatos afundados na lama. Várias pessoas saíram correndo, com medo de ser alguma manifestação sobrenatural. Os homens, em geral mais práticos, acudiram os que tinham caído sobre a laje e sobre os três caixões que por baixo da primeira estavam. Uma senhora de corpo pesado caíra de pernas abertas sobre uma barra de concreto mais estreita, e chorava com muita dor. Três homens tiveram de erguê-la e puxá-la para fora da cova. Os funcionários do cemitério tentavam ajudar, também, e deixaram abandonado o novo inquilino. Outra mulher caíra com o filho no colo, e de pé esperava o socorro. Aproximei-me dela, tomei-lhe a criança e ajudei-a a subir de volta. Devolvi-lhe o bebê, ela agradeceu e eu me afastei outra vez. Já não havia mais pessoas na gigantesca cova que se abrira, e os funcionários do cemitério apressaram-se a cobri-la toda de novo, trabalho dos mais difíceis, pois não havia terra para se jogar por cima. Desistiram, meu amigo pediu, em nome da viúva, que enterrassem o corpo do seu primo de uma vez, para depois voltar aos mortos antigos. Muitas pessoas de outros enterros haviam se aproximado para ver o que era aquilo, os coveiros enterrando uns, desenterrando outros, o que acontecera, mas todos mantinham uma certa distância, preferiram o passeio, este certamente não cederia. Muitas pessoas choravam, mais agora que antes. Minha calça e meus sapatos estavam enlameados, minhas mãos também, embora menos. Limpei-as na calça, esperei mais um tempo, os coveiros faziam mais depressa agora seu trabalho. Terminaram de enterrar o primeiro morto e foram chamar ajuda para cobrir o buraco e os caixões expostos. Meu amigo conduziu a viúva em direção à saída, ela chorava muito, estava assustada. Os parentes e amigos do morto hesitaram uns, saíram apressados outros, e eu, como não tinha mais que fazer ali, dirigi-me para o meu carro. Abri a porta, procurei uns jornais no banco traseiro, forrei o dianteiro com eles, sentei-me, liguei o carro e voltei para casa, levemente irritado com tudo aquilo.
Ao chegar em casa, tirei a calça e os sapatos imundos e joguei-os na área de serviço. Ao tirar o paletó, senti um peso no bolso. Meti a mão e achei a vela que pegara da capela, uma grossa vela branca, já de pouca altura e com o pavio afundado. Estava molhada, só poderia ser acesa talvez no dia seguinte. Coloquei-a sobre a prateleira, na estante. À noite tentaria já acendê-la, para que queimasse até se acabar de vez.
Luis

Um comentário:

Paola Sabino disse...

tavares...
a única coisa que eu tenho a dizer é que você manda muito bem!
sério!
um dia eu vou saber escrever!
hehehe
beijo