27 de maio de 2006

A donzela

Era uma mulher cheia de vícios. Fumava de tudo. Bebia até cair. Tomava duas aspirinas por dia, isso quando não tinha dor de cabeça. Mexia no cabelo, chacoalhando-o nervosamente, de cinco em cinco minutos. Chupava dedo. Roía unha. Espremia espinha compulsivamente. Dizia “elo de ligação” e “fato verídico” em quase todas as suas reflexões. Falava alto. Usava com habilidade surpreendente todos os palavrões do português, do inglês e do italiano, além de alguns franceses. Falava de política, sempre mal. Não perdia um jogo do Flamengo. Bebia muito café, reclamando sempre que amarelecia os dentes. Estalava todos os dedos da mão ao mesmo tempo, escandalosamente, e fungava, gripada ou não.
Pavorosa.
Mas eu amava essa mulher loucamente. Não que fosse bonita, mas tinha algo nos olhos que vício nenhum estragava. Um encanto, um feitiço. A perdição definitiva. O que vi primeiramente nos olhos dela se estendeu ao rosto, ao corpo todo, às mãos, à boca, ao colo, à alma. Para mim, parecia um anjo, a brancura da pele dava-lhe toda a pureza espiritual que ela, definitivamente, não tinha. Mas para mim tinha. E quanto mais ela me olhava com aqueles olhos, mais bonita ficava, mais angelical, mais sensual. Mas ela não me permitia nenhuma aproximação. Se eu chegasse mais perto, meu repertório de xingamentos se ampliava. Amigos e ponto. E eu ficando louco.
Imaginava o gosto do beijo dela, delirava, quase podia senti-lo algo doce, misturado ao hálito perfumado, combinando-se à maciez dos lábios. Imaginava o seu corpo, observava o desenho dos seios, dos quadris e das pernas, por cima da roupa sempre muito pudica. Nunca vira-lhe um tornozelo sequer, mas imaginava até os contornos do seu umbigo. Ela, pra mim, nem bola.
Ela gostava de dançar. Íamos, às vezes, a algumas festas, e ela sumia, dançava sozinha e só aparecia quando queria ir embora. Jantávamos juntos muito. Ela manuseava delicadamente os talheres, e mastigava com uma beleza tranquila, que eu não sabia mais se era mesmo bela ou se eu enlouquecera de vez. Ela não gostava de cinema, nem de teatro. Saíamos muito para caminhar, à noite, conversando. Quando ficava muito tarde eu a acompanhava até sua casa, depois ia embora, sozinho. Ela jamais me convidou pra subir. Eu, pro meu apartamento, não longe dali, voltava triste, e triste dormia.
Comecei a ficar deprimido. Aquela meia-aceitação, seguida da constante repulsa, me fazia sofrer horrorosamente. Eu não tinha uma chance com ela. Mas amava-a, e muito. Eu não dormia bem, só sorria quando estava com ela. Não tinha amigos. Trabalhava sem gosto, comia pra sobreviver. Não via graça em mais ninguém. Quando não estava com ela, ficava sozinho.
Certa vez tomara séria decisão: declararia o meu amor a ela. Exigiria, por piedade, que me permitisse amá-la. Falei-lhe, e ela não se comoveu. Não era uma mulher sensível, aliás era grossa. Nem assim meu amor diminuiu. Sofri durante quase três anos. Ela sensibilizou-se um pouco, e passou a me tratar com menos repulsa, mas nada mais que isso. A paixão aumentou. Comecei a ter medo de jamais se resolver o nosso relacionamento. Nem ela me quereria, nem eu deixaria de querê-la. Ficava cada vez mais linda. Mais nenhum vício dela irritava-me. Adorava-a incondicionalmente. Tremia só de pensar nela. Vê-la era o único alívio que eu tinha. Era o único momento de prazer. Sem ela, só sofrimento. Desesperei-me. Passaria o resto da minha vida sofrendo.
Um dia passou.
Acordei e não senti vontade de ligar pra ela. Almocei sozinho, e sozinho passei a tarde. À noite saí com os colegas do escritório. Esqueci-me da hora, e dela, completamente. Voltei pra casa e não a amava mais. De repente. Indignei-me. Questionei minha personalidade. Como ficava o meu autocontrole? Passei a noite olhando pela janela, pensando no que faria, então. Esperei. Esperei. Ao amanhecer, sorri, feliz. Achei muito bom e saí pra trabalhar.
Luis

5 comentários:

Anônimo disse...

hum gostei.
acho que as vezes isso acontece mesmo,quer dizer,depois que a paixao passa,vc olha pra pessoa,pro seu ex objeto de desejo e pensa;" No que eu tava pensando???!"

Paola Sabino disse...

Uauu...
muito bom. Aliás, pra mim, o melhor de todos os contos seus que já li.
Quanto às minhas postagens, acho q nessa semana saí pelo menos uma.
hehehe
beijo

Anônimo disse...

incrível.
às vezes nos prendemos a ser românticos, e esquecemos quão bela a doce amargura da vida pode ser.

Pode fazer mais um tracinho no seu caderninho de contagem de fãs.

;)

Anônimo disse...

Conto muito bom. Mas acho que uma mulher tão repugnate como essa, conforme o descrito no início do texto, não conseguiria comer graciosamente, quase como uma lady. Parece que não combina com a personalidade dela.

Luis disse...

ela nao era graciosa. ele é que estava apaixonado.
que bom q estão gostando do conto.