8 de julho de 2006

O rio

Um dia o rio da aldeia começou a subir e não parou mais. Minha casa, à beira dele, foi a primeira a desabar. Depois foram as outras. Até que o vale todo se alagou. Os homens da aldeia subiram a montanha, até a cidade do outro lado, para saber o que acontecia. Lá do alto, estupefizeram-se. Apesar de ser muito distante do rio, toda a parte baixa da cidade também submergira.
Quando regressaram à vila, após contatarem as autoridades, anunciaram: de todos os arredores chegavam notícias de alagamento. Mesmo onde não havia água por perto. Todos guardamos o que se tinha salvo das águas e pusemo-nos a subir a montanha. Ninguém sabia ao certo para onde ir, mas no vale é que não se podia ficar.
No alto da montanha, decidimos que não era prudente descer, porque as águas já escondiam meia cidade. Os moradores, aproveitando que a estrada estava seca, enfiavam-se nos carros e ônibus e fugiam. Os homens da aldeia, com algum esforço, buscaram madeira e fizemos abrigos no alto da montanha. As crianças, apesar de um pouco assustadas, divertiam-se. Assim passamos o primeiro dia e a primeira noite na montanha.
Amanhecido, os homens desceram à parte alta da cidade para buscar comida. Voltaram com olhares de preocupação. Tinham conseguido alguma coisa, mas os pontos mais altos também já principiavam a molhar. A decisão dos homens foi que comeríamos apenas duas vezes por dia. Olhávamos com algum susto uns para os outros. Meu marido aproximou-se de mim e meus olhos encheram-se de água. O que vai acontecer? Não sei, mas não tenha medo. Como não, homem, se não temos para onde ir? Ele me pôs a mão no ombro e duas lágrimas deixaram um rastro brilhoso em meu rosto. Vamos preparar o jantar, e o vi afastar-se com a segurança que os homens demonstram quando não fazem ideia de qual será o próximo passo.
O jantar foi minguado, só as crianças, que por natureza preferem acabar logo de comer, só elas não o perceberam. Todos comeram em silêncio, e caladas guardamos a louça, e sem mais uma palavra todos se recolheram. E assim passamos o segundo dia e a segunda noite na montanha.
Contrariando nossas esperanças, mas não as expectativas, as águas continuaram subindo, e os homens decidiram construir barcos. Após algumas tentativas frustradas de arranjar madeira na montanha, decidiu-se desfazer as cabanas. A madeira foi suficiente para fazer algumas jangadas e remos. A água continuava subindo. Após o sétimo dia, embarcamos no gigantesco oceano doce que se formara.
Não fosse a falta de comida, até que os enjoos, o tédio e o medo, que se tornaram comuns em alto-mar, não fariam tanto mal. Mas após quatro dias sem avistar terra seca, a valentia cedeu lugar ao desespero. Comia-se peixe cru. Água não faltava, apesar de no fim da primeira semana navegando ela já estar meio salobra. Inferimos que havia se misturado com a água do mar, o que aumentou a sensação de pânico. Encontrávamos seguidamente outras embarcações, mais ou menos improvisadas, e de todos os ocupantes recebíamos as mesmas informações: a água cobria tudo, e a única salvação possível era encontrar um navio que ainda tivesse lugar.
Quando já desesperávamos, ao fim de duas semanas, encontramos um navio estrangeiro, grande e completamente lotado. Não éramos muitos, mas só puderam subir a bordo as mulheres e as crianças. Os homens receberam sacolas em que havia provisões parcas. Despedi-me de meu marido com a leve certeza de que não nos veríamos mais. Ele disse que aquilo ia passar, as águas baixariam e que seria fácil nos localizarmos, a partir da identificação do navio em que entrávamos. As crianças já não se divertiam, e todos sentíamos vontade de chorar, embora não houvesse mais força nem lágrimas.
Subimos a bordo do navio estrangeiro, aprendemos rapidamente a língua dos tripulantes e os gestos dos demais refugiados. A comida era pouca, e as crianças aprenderam rapidamente a pescar e cozinhar o peixe. Ao menos havia peixe. A água, no entanto, tornou-se dia a dia mais salgada, e ao fim de um mês não se podia mais beber. Havia a bordo um equipamento que a tornava potável, mas a transformação era lenta, e a quantidade pequena. As provisões que havia acabavam-se. Somente peixes, e algumas aves que conseguíamos acertar.
Não havia muito o que fazer no navio. As crianças tinham aprendido novamente a brincar, e fizeram-se todas elas muito amigas. É certo que brigavam com frequência, como é próprio das crianças. Os adultos tentávamos conversar uns com os outros, e pouco a pouco aprendemos a contar histórias numa língua que todos entendiam, e ríamos muito. À noite cantávamos. Quase não se dormia, porque tínhamos medo de que a água nos surpreendesse durante o sono. Aprendemos a diferenciar os sabores dos peixes, e fomos aos poucos nos acostumando a beber menos água.
Não chovia, nunca, apesar da umidade alta. A água já era totalmente salgada, mas ninguém se arriscava a mergulhar nela. Não sabíamos que espécies haveria submersas, que contaminações teriam ocorrido, tínhamos medo de ser puxados pelos que se afogaram. Todos receavam olhar para baixo, para o fundo do oceano, para as cidades, invisíveis e extintas, que lá deviam estar. Olhávamos para cima, onde milhares de pássaros faziam imensa algazarra e buscavam um lugar para pousar.
A tripulação do navio não conseguia se localizar. Os instrumentos de navegação — inclusive a bússola — tinham parado de funcionar. Mas nem se cogitava ficar parado, no meio das águas. Orientando-nos pelas estrelas e pelo sol, procurávamos uma ilha, uma cidade emersa, um milagre. De vez em quando dávamos com outros navios, todos procuravam no convés vizinho um parente, um amigo, de vez em quando alguns se reencontravam, trocavam notícias, às vezes um mudava de barco, às vezes apenas se despediam. No entanto, não importando de onde viessem, as notícias eram sempre iguais.
Até que um dia veio uma notícia diferente: não se sabia quem tinha começado, mas alguns navios paravam no meio do mar, delimitavam um espaço, hasteavam uma bandeira e decretavam que aquele pedaço lhes pertencia. O comandante do nosso barco, após avaliar atentamente o que acabávamos de ouvir, conversou com a tripulação, desenharam uma bandeira, criaram um nome e ancoraram num dado lugar, que seria dali em diante nosso país. Tomou-se coragem e alguns homens embarcaram nos botes que havia e cercaram a área que pertenceria ao navio, e ali ninguém mais senão nossa tripulação poderia navegar e pescar. Em poucas semanas diversas embarcações pequenas quiseram juntar-se a nosso território, palavra esta imprópria sob todos os aspectos, mas não havia outra que pudéssemos usar. Ampliamos nossas fronteiras, e com mais gente havia maior facilidade no revezamento da guarda.
Quando nos demos conta, já passáramos um ano no navio, e decidiu-se instituir novo calendário, a partir do ano um. Estávamos, portanto, no ano dois. Centenas de navios e outras embarcações tinham formado países oceânicos, e as fronteiras começavam já a se aproximar umas das outras, o que gerou alguns conflitos, logo resolvidos pacificamente. Encontramos, finalmente, um navio cujos técnicos tinham conseguido fazer funcionar o rádio, e por meio dele entraram em contato com navios em várias partes do globo, e soube-se assim que não havia mais nenhuma parte seca conhecida. O imenso oceano tinha-se dividido em territórios, centenas de navios que delimitavam suas fronteiras, selavam acordos, elegiam governantes e, naturalmente, entravam em guerra quando não se atendia a seus interesses. O comandante do nosso navio conversou longamente com o comandante do barco que tinha rádio, e contentes anunciaram a fusão de nossas fronteiras.
Éramos agora dois navios, uma dúzia de botes e tínhamos um rádio. Soubemos de um navio gigantesco, ao norte, que vencera uma guerra contra seus vizinhos e tornara-se o maior país de que se tinha notícia. Alguns dos nossos resolveram viajar até lá para conhecer o navio poderoso. Voltaram deslumbrados, trazendo uma televisão. Sintonizava distorcidas imagens daquela grande nau do norte. Alguns dos nossos tomaram um bote e, com autorização do comandante, rumaram para lá, com a intenção de não voltar mais. Eu ficava olhando a televisão horas e horas, esperando ver algum rosto conhecido, meus irmãos, meu marido. Pelo rádio chegavam notícias diversas, sobre guerras, política, invenções. Não havia dinheiro, não havia moeda disponível, então o sistema financeiro se resumia às trocas e a serviços de todo o tipo.
A ideia de reiniciar o calendário foi amplamente aceita, e assim comemoramos com festa a entrada do ano três. E foi no ano quatro que uma notícia estarrecedora chegou: um navio ao leste tinha desenvolvido um mecanismo de medição do nível da água, e anunciou que as águas continuavam subindo, e rapidamente. Houve desespero de parte daqueles que ainda esperavam pelo ressurgimento do que estava para sempre afogado. Alguns cientistas tentavam explicar como o planeta suportaria as mudanças atmosféricas e o peso das águas. Anunciaram-se diversas teorias catastróficas, provou-se e desmentiu-se que o planeta sairia de órbita, que esquentaria, que esfriaria, que se abriria uma fenda enorme que sugaria toda a água. A cada novo anúncio, sobressaltávamo-nos, e nada acontecia.
Mas um dia aconteceu o milagre: durante a noite o navio começou a balançar de um modo estranho. Corremos ao convés, olhamos para baixo e vimos as águas se distanciando, o navio completamente emerso, flutuando no ar. Olhamos ao redor e a visão era deslumbrante e aterradora: flutuavam todos, milhares de pontos luminosos se erguendo das águas e alçando voo. Estávamos em completo silêncio, e os sons eram apenas os que fazia a água. Naquela hora, tive certeza de que havíamos todos morrido, e subíamos aos céus, ao fim dos tempos, e abri os braços, de olhos voltados para cima, ao encontro definitivo com as estrelas, como sonhávamos nas noites quentes de antigamente, enquanto nos banhávamos no rio que cortou nossa aldeia.
Luis

5 comentários:

Ratapulgo disse...

estupefizei-me!
;)

Anônimo disse...

ahn,gostei sim,eu vejo uma certa beleza no desespero...
que bom q vbc voltou a escrever!

Paola Sabino disse...

woww!
estou impressionada com a criatividade.
muito bom tavares!
eu estava com saudade de ler seus contos.
realmente gostei muito...
meu blog está se degradando. falta a inspiração que eu sempre tive, ela fugiu!
aiai
parabéns pelo conto.
continue se comunicando comigo viu!

Anônimo disse...

bom te ver por aqui, paola.
que há com seu blogue? as férias estão formando teias de aranha em seus neurônios?
:o)

não deixe de escrever. a inspiração vem com um pouco de teimosia e persistência.
beijos!

Anônimo disse...

Lindo e inesperado. Gostei muito.